Dosvox - Um Novo Acesso dos Cegos à Cultura e ao Trabalho
Os deficientes visuais no Brasil
Segundo dados obtidos com a Organização Mundial da Saúde, o número de pessoas portadoras de deficiência visual no Brasil seria hoje estimado em aproximadamente 750.000 pessoas. Esse número serve apenas como base, uma vez que não existe estatística oficial sobre deficiência em nosso país.
Uma pessoa cega pode ter algumas limitações, as quais poderão trazer obstáculos ao seu aproveitamento produtivo na sociedade. Grande parte destas limitações podem ser virtualmente eliminadas através de dois elementos:
- uma educação adaptada à sua realidade
- uso de tecnologia para diminuir as barreiras
Existe um elemento chave que diferencia o cego brasileiro de um cego do primeiro mundo: o acesso à educação e à cultura. Isso é facilmente explicável: existe um custo adicional para a educação do cego. Por exemplo, produzir um livro em Braille é muito mais caro e difícil do que um livro comum, e assim, só são transcritos para Braille aqueles que são básicos. Jornais em Braille, nem pensar !
Felizmente isso está mudando, com a disponibilidade de tecnologia a custo baixo. Dois elementos são chave deste processo: a existência do gravador portátil e o microcomputador.
O gravador, permitindo o registro e a reprodução de textos a custo baixo, foi um grande salto para o acesso à cultura. Hoje existe um grande número de "livros falados", que ampliam o horizonte cultural do cego.
O microcomputador, tecnologia muito nova, amplia até um limite inimaginável as oportunidades do cego. Desta tecnologia falaremos a seguir.
Tecnologia da computação a serviço do cego
Desde a década de 70, foram desenvolvidos diversos equipamentos para serem acoplados aos computadores grandes, visando adaptar uma pessoa cega ao seu uso. Mesmo no Brasil, existem algumas dezenas de cegos que trabalham como analistas de sistemas e programadores, auxiliados por tais equipamentos. Esses equipamentos, entretanto, são relativamente caros, inviabilizando o seu uso amplo pela população.
Para completar o quadro, hoje em dia, o computador é utilizado em virtualmente todos os tipos de trabalho. Além disso, o barateamento do preço dos componentes eletrônicos provocou sua popularização. Hoje, qualquer pessoa de classe média pode adquirir um microcomputador por um preço acessível. Atualmente, estão facilmente disponíveis no computador recursos de áudio e vídeo, numa visão tecnológica conhecida como multimídia.
Para o deficiente visual, a existência desta tecnologia de baixo custo é a chave para sua utilização. Através do uso de recursos sonoros, por exemplo, um cego pode utilizar facilmente o computador, pois a maior parte de sua interação com o mundo é feita através destes meios (audição e fala).
Naturalmente, a utilização do computador deve ser viabilizada através da utilização desses recursos em programas especialmente preparados. Esses programas suprem a deficiência visual através da utilização de recursos sonoros (por exemplo, oferecendo um “feed-back” sonoro das informações mostradas no vídeo). Tais programas podem ser agrupados em duas classes distintas:
Programas de adaptação sonora, que possibilitam ao deficiente utilizar os programas comerciais já existentes no mercado, mesmo que esses não tenham sido preparados para falar;
Programas aplicativos, similares aos que existem no mercado, mas adaptados às necessidades do deficiente.
Existem muitos destes programas disponíveis no mercado, e utilizáveis em microcomputadores. Infelizmente, até este momento, estes programas têm algumas restrições muito sérias:
– a maior restrição: não falam português;
– custo alto: um programa de auxílio pode chegar facilmente ao custo de 1000 dólares ou mais;
– utilização de sintetizadores de voz caros: a fala é produzida em sintetizadores cujo preço varia de 1000 a 3000 dólares;
– os sistemas falam "computês": os sistemas existentes utilizam todo jargão de computação, e assim, uma pessoa só consegue dominar a ferramenta computacional após um treinamento especializado e muitas vezes demorado.
O sistema DOSVOX veio para mudar este panorama.
O sistema DOSVOX
O Núcleo de Computação Eletrônica da UFRJ, situado no Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza, criou o sistema DOSVOX, destinado a auxiliar os deficientes visuais a usar o computador, executando tarefas como edição de textos (com impressão comum ou Braille) leitura/audição de textos anteriormente transcritos, utilização de ferramentas de produtividade faladas (calculadora, agenda etc), além de diversos jogos. O sistema fala através de um sintetizador de som de baixo custo, que é acoplado a um microcomputador tipo IBM-PC.
O sistema DOSVOX evoluiu a partir do trabalho de Marcelo Pimentel Pinheiro, estudante de informática cego, e que desenvolveu o editor de textos do sistema. Marcelo é hoje programador do NCE, onde trabalha sob orientação acadêmica do prof. José Antonio Borges, responsável pela coordenação do projeto DOSVOX.
São diversas as chaves que provocaram um sucesso extraordinário deste projeto, que hoje é utilizado por mais de 500 cegos de todo Brasil:
– custo muito baixo - o sistema foi industrializado e hoje é vendido por menos de 100 dólares;
– a tecnologia de produção é muito simples, e viável para as indústrias nacionais;
– o sistema fala e lê em português;
– o diálogo homem-máquina é feito de forma simples, removendo-se ao máximo os jargões do "computês";
– o sistema obedece às restrições e características da maioria das pessoas cegas leigas;
– o sistema utiliza padrões internacionais de computação, e assim, o DOSVOX pode ser lido e pode ler dados e textos gerados por programas e sistemas de uso comum em informática.
O projeto tem um grande impacto social pelo benefício que ele traz aos deficientes visuais, abrindo novas perspectivas de trabalho e de comunicação. O projeto é resultado do esforço de muitas pessoas, entre as quais se destacam o Eng. Diogo Fujio Takano, projetista do sintetizador de custo baixo e o analista Orlando José Rodrigues Alves (in memoriam) desenvolvedor de grande parte do sistema, e Luiz Cândido Pereira Castro (in memoriam), também cego, que foi o responsável pela distribuição do DOSVOX para o Brasil
A tecnologia, portanto, existe no Brasil. A ideia, portanto, é torná-la disponível para a comunidade. O próximo bloco fala de como esta tecnologia pode ser aplicada aos diversos problemas.
Ações concretas através do sistema DOSVOX
Organizamos a seguir diversas situações em que o uso do sistema DOSVOX pode ser a chave da solução para os problemas do portador de deficiência visual. São propostas as ações para soluções dessas situações.
a) formação da criança e jovem deficiente visual;
A formação da criança e jovem cego é muito prejudicada por falta de acesso a recursos, tecnologia e cultura. É até possível colocar um cego numa classe comum de escola, porém os livros são todos impressos no sistema comum. Nessas circunstâncias, o aluno pode utilizar a tecnologia Braille para copiar e fazer seus trabalhos escolares, mas isso esbarra em pontos chaves:
– raríssimos professores sabem Braille
– sem o apoio de pessoas voluntárias (por exemplo a própria família) que se disponham a ler os livros impressos comuns, o cego ficará restrito à informação verbal transmitida pelo professor.
Ação: Com o uso do DOSVOX o aluno pode fazer seus trabalhos sendo facilmente compreendido pelo professor. O DOSVOX, acoplado a um aparelho de "scanner" e com o uso de um programa de "Optical Character Recognition" (O.C.R.). pode ler textos no sistema comum.
Os problemas desta ação são disponibilizar o DOSVOX à comunidade estudantil, em especial os equipamentos de scanner. Isso é plenamente viável, centralizando alguns equipamentos em bibliotecas públicas, a exemplo do que é feito na Biblioteca de Curitiba.
b) dificuldade de acesso a leitura;
A dificuldade de leitura, visto no item anterior, e fundamental no estudo, acompanha sempre o cego. Por exemplo, uma pessoa que tenha ficado cega, e que já tenha uma profissão, tem totalmente tolhido seu desenvolvimento profissional. O acesso a jornais impressos só é possível via uso de "ledores", termo que designa aquele que lê para a pessoa cega .
Ação: Como todos os jornais, revistas e livros hoje são produzidos por computador, o disquete pode, em geral, ser lido pelo DOSVOX. Um exemplo disso, é o Jornal O Estado de São Paulo e o Jornal do Brasil, que disponibilizam na rede Internet para os Deficientes Visuais, de forma gratuita, os seus resumos diário e semanal.
Os problemas dessa ação se relacionam à dificuldade de conscientização dos editores da importância social de tal ação, pois embora a disponibilização dos textos em disquete não acarrete despesa (uma vez que os textos já são computadorizados), provavelmente também não dará lucro comercial, pois o número de exemplares vendidos será pequeno.
Obs.: Como uma primeira ação neste sentido, a equipe DOSVOX conseguiu a autorização por parte da editora IBPI do Rio de Janeiro, para impressão em Braille, no Instituto Benjamin Constant, de toda biblioteca básica de computação.
c) Os deficientes visuais não têm acesso a informações básicas para convivência social;
É extremamente difícil para um cego ter acesso a informações absolutamente triviais, tais como preço de mercadorias, número de telefone, cardápios, orientações do espaço público, caixa automática bancária, etc. Por outro lado, a tecnologia informática cada vez mais domina o acesso do usuário à informação.
Ação: Prover nas soluções tecnológicas o acesso sonoro, possivelmente utilizando a tecnologia do DOSVOX, que é aberta, e que pode ser facilmente adaptada a estes equipamentos.
As dificuldades desta ação têm a ver especialmente com conscientização dos produtores de que a tecnologia existe e é viável de ser usada, e dos compradores da tecnologia que devem solicitar que tais facilidades sejam colocadas. É importante lembrar que muitas "features" dos sistemas computadorizados são meras "firulas" para atrair o usuário, e um sistema falado pode ser um elemento altamente atrativo. Qualquer microcomputador pode falar.
d) Os deficientes visuais fora das capitais do Brasil, de um modo geral, encontram mais dificuldades de acesso à cultura e à informação;
Ação: Através da ação de instalar nas bibliotecas das pequenas cidades do interior microcomputadores, que, entre outras coisas, poderiam servir para as pessoas cegas terem acesso aos disquetes gerados nas bibliotecas das capitais, se poderia levar à cultura ao cego de cidades médias do Brasil. Em especial, via telecomunicações, os disquetes das bibliotecas das grandes cidades poderiam ser transportados para as cidades menores. O DOSVOX possui suporte a telecomunicações via telefone.
As dificuldades deste processo se referem à coordenação das interações entre bibliotecas, uma vez que, praticamente, todas as cidades médias, hoje em dia, já estão equipando suas bibliotecas com microcomputadores. O custo do sistema DOSVOX, sendo muito baixo, não introduz uma dificuldade maior neste processo.
Um possível modelo a seguir é o que vem sendo adotado em algumas cidades do Brasil, onde pessoas cegas montam pequenas estruturas e ensinam a tecnologia DOSVOX (entre outras) para deficientes visuais, coordenando este trabalho com as bibliotecas públicas.
e) os deficientes visuais poderiam ser muito mais produtivos se tivessem ensino profissionalizante adaptado;
Existe uma série de atividades, que poderiam ser perfeitamente realizadas por deficientes visuais, com preparo de nível médio, com uso do computador. Alguns desses exemplos são as atividades de “telemarketing”, atendimento de reclamações por telefone, recepcionista, etc. Essas atividades, naturalmente exigem um treinamento, por razões óbvias.
Ação: Através da tecnologia DOSVOX, muitas oportunidades de profissionalização podem surgir. Um exemplo é o da Embratel, que está promovendo a reciclagem profissional de seus telefonistas cegos, para poder colocá-los em novos pontos dentro da empresa, em que farão, essencialmente, o atendimento ao público, utilizando telefone e computador, prestando informações e registrando no computador reclamações e pedidos feitos por usuários.
Essa profissionalização poderia ser feita tanto nas instituições destinadas a ensino de cegos, quanto nas próprias empresas, da mesma forma que é feita para funcionários comuns.
f) o uso de computador pode dar novas oportunidades às pessoas que ficam cegas após sua inserção no mercado de trabalho;
Existem milhares de pessoas que adquirem cegueira depois de estarem formados. Causas variadas, desde doenças até acidentes, retiram do mercado de trabalho centenas de pessoas por ano. São médicos, juízes, advogados, engenheiros, que se vêm privados de meios para produzirem.
Ação: Viabilizar a readaptação das pessoas que ficam cegas, ensinando-lhes, durante o período de reabilitação, a utilização da tecnologia adequada a cada caso.
Pelo fato de o DOSVOX ser uma tecnologia aberta, ele pode ser usado e adaptado para uso em um sem número de atividades. Um exemplo extremo é o de músicos cegos, produzindo música por computador, usando programas profissionais, acionados via DOSVOX.
g) cego deveria ter acesso à "aldeia global";
As telecomunicações são uma realidade dos tempos atuais. O transporte de informações através da rede telefônica, interligada ao sistema internacional de comunicações, utilizando tecnologia de satélite, viabiliza o transporte de informações, quase instantâneo, a qualquer um que disponha de acesso à Internet, serviço prestado pela Embratel a custo reduzido.
Para o deficiente visual, o acesso às informações via rede, viabilizaria a recepção de jornais, informações gerais, troca de mensagens, acesso às centrais de vídeo texto, informações bancárias etc.
Ação: A tecnologia DOSVOX incorpora o acesso às telecomunicações através de “fax-modem”. O desejável seria um tratamento diferenciado de tarifas para o uso do deficiente às telecomunicações. Uma instituição pública poderia centralizar o armazenamento das mensagens de correio eletrônico, e a distribuição de informações e programas destinados aos deficientes, a exemplo da RENDE, Rede Nacional de Deficiente, da Universidade de São Paulo.
Através das redes públicas e de pesquisa, por exemplo, RENPAC, é viável ter toda a comunidade deficiente visual comunicada entre si e com o mundo, através da Internet. O custo disso é irrisório, pois o volume de informações a comunicar é compatível com o serviço que é prestado pelas BBS comerciais do país.
h) instituições tradicionais não têm meios que facilitem o acesso à tecnologia;
Ter acesso à tecnologia implica mais do que comprar computadores: o material humano é o item principal. Difundir a tecnologia para as instituições que já existem é um desafio a ser vencido, uma vez que muitas vezes a mudança para incorporar a tecnologia representa um esforço que estas não estão dispostas a fazer.
Ação: Favorecer a instalação de equipamentos e treinamento nas instituições idôneas do país. Aí, a iniciativa privada pode ter papel importante, no sentido de, a partir do pessoal treinado nessas instituições, dar-lhes oportunidade de estágio ou emprego.
i) o cego e a universidade;
Atualmente na UFRJ existem menos de 10 (dez) deficientes visuais cursando cursos de graduação e pós-graduação, tais como: Informática, Matemática, Direito, etc. A causa desse pequeno número pode ser explicada por problemas sócio-econômicos do país que atingem a população de baixa renda, dificultando o ingresso nas universidades, e dos poucos recursos encontrados para a formação dessas pessoas. A dificuldade é ainda maior à medida que o grau de especialização aumenta. Falta a eles literatura especializada, equipamentos e monitoria especial.
Ação: A universidade tem sempre atuado como o centro de produção de tecnologia. As indústrias buscam suas soluções em pesquisas desenvolvidas dentro das universidades. Assim, ela tem gradativamente conseguido papel de destaque dentro da sociedade. O que se propõe agora é a utilização dessa tecnologia já produzida no auxílio aos deficientes.
Assim, o papel da universidade passa a ser não apenas o de desenvolver tecnologia, mas de desenvolver com humanidade. O auxílio ao deficiente pode ser encarado como um investimento a médio prazo, que acarretará em retorno de novas tecnologias para a própria sociedade, produzidas, agora, pelos próprios deficientes. Essas novas tecnologias podem ser reaplicadas, produzindo então um ciclo que se auto-impulsiona.
j) necessidade de treinamento de pessoal de programação para difundir a tecnologia de fala aos mais variados campos;
A tecnologia de fala existe e funciona. Aplicá-la a campos específicos exige que existam programadores e analistas de sistemas com domínio dela. Embora essa tecnologia seja simples, é necessário um esforço de sua difusão no âmbito técnico.
Ação: É importante promover treinamentos e publicações em que a tecnologia seja explicada para que possa, em curto espaço de tempo, ser dominada pelo pessoal técnico.
Conclusões
O projeto DOSVOX foi criado utilizando tecnologia totalmente nacional. Tanto o software quanto o hardware são projetos originais, de complexidade baixa, e adequados às necessidades e dificuldades financeiras do Brasil.
O impacto do sistema DOSVOX sobre a comunidade cega e deficiente visual é grande, e pode ser facilmente avaliado pela imensa repercussão na imprensa escrita, falada e televisada. O projeto DOSVOX pode ser uma cunha que abra novos espaços a uma parte importante da população brasileira, cujo destino forçou a uma série de limitações. Com o uso efetivo do sistema, adaptado às reais necessidades dos cegos do Brasil, esperamos dar mais um passo no sentido de tornar os deficientes visuais elementos mais produtivos e melhor integrados à sociedade.
Entretanto, ele é apenas uma ferramenta. Para que ela possa ser efetivamente importante, é necessário o início imediato das ações que possam aplicá-la ao maior número de deficiente visuais do nosso país. E isso depende do esforço de todos.
ANTONIO JOSÉ BORGES - Professor do Núcleo de Computação Eletrônica da UFRJ
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